quarta-feira, 5 de março de 2014

Para deixar de entender obras de arte


Você sempre se preocupou em entender as obras de arte. 
Deslizando por um museu, me encontro ao seu lado, pendurada ao seu ombro enquanto você anda em passos ordenados, seguindo uma linha reta imaginária. É o muro. Você anda sob um muro porque seus olhos se esforçam para mandar a imagem dos quadros, em seus borrões e ilusões, para o cérebro, mas esse ocupa-se recebendo os impulsos do sistema nervoso: o calor do meu corpo apoiado no seu.

John Fusciante certa vez falou sobre o grito do Kurt Cobain, especificamente em certa música. “Uma celebração da insanidade” ele disse, e você bufa falando que esses caras todos estão cheios de drogas, o que não é mentira.

A insanidade é o nome vulgar da desadequação aos padrões, da falta de juízo, conduta, mas sobretudo, da falta de sentido. Como Delírio, Dr. Bacamarte e tantos outros personagens, os insanos estão em outro lugar que não o nosso.

Nos entregamos certos momentos à abolição de todo e qualquer sentido, quando somos o monstro de quatro pernas e duas cabeças que vibra e treme ao menor estímulo. Algum sujeito metido chega e nos lembra que no sexo tudo tem sentido: o da procriação. Mas quando bloqueamos a ordem natural com uma película de borracha, só sobra o prazer. Um objetivo, mas um sentido? 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

To quase postando um trabalho acadêmico, que é tudo que eu tenho tempo para escrever

Mas vai um poema antigo, só para atualizar.


QUANDO DEIXEI O UMBIGO SEM FUNDO CAIR NA ÁGUA

Uma incoveniente poça
Goteira de ar-condicionado
Desgraçou a moça
Quem não teve cuidado

Deixou o livro cair na água.
Como vai reler as páginas?
A capa agora está molhada
Perdidas todas as sátiras!
(2009)

Baseado em fatos reais.


quarta-feira, 4 de julho de 2012

Manequim


Encontrei um manequim abandonado no lixão. Uma manequim, quero dizer. Constatei que a sua chegada ao lar dos inutilizáveis e das moscas era recente, pois não estava tão suja, nem tão velha, só deficiente de um braço. Sentei a moça num sofá, um decrépito modelo do ex-conforto, de pano estampado rasgado e com uma mola saltitante, cuja ponta simula o fuso da roca - aquela maldita roca que adormece princesas. Quando a princesa adormece, o sonho é a nova realidade, a lucidez se dissipa numa nuvem que só choverá (de volta) com o beijo do príncipe. 
Eu tendo a pensar no inverso das situações. Espetei a mão da manequim na ponta da mola, mas sangue algum escorreu. Recordei-me que a maldição não modifica o plano material. O olhar vazio tornou-se expressivo, mais especificamente: revelou surpresa. Ela, sinteticamente produzida, tornou-se lúcida e consciente de uma vida.
Tocou-se toda, com sua única mão. Era de um branco lamentável, com uma cabeça sem cabelos. Gemia suspeitando ser capaz de produzir sons mais complexos, mas ainda inocente quanto ao saber da palavra. Eu a mostrei:
– Oi, fala comigo.
– O-oo-oiu, OH! – tampou a boca. Entende-se porque o nosso despertar (nós, pessoas) demora alguns anos: o choque com os sentidos é terrível. 
– Não se assuste. Você está viva, eu queria conversar, apenas.
– ee-U nã...ão enteend-o – ela tremia, elevava o tom, desistia das palavras, retornava, abaixava o tom como um robô defeituoso. 
– vou te explicar: você foi feita para posar numa vitrine de loja. Eles te trocavam as roupas o tempo todo, te arrumavam e enfeitavam. Era para as mulheres reais se excitarem ao ver a vitrine, mas não com você, só com as roupas. Você podia estar no palco mas era sempre só um pedaço do cenário. As roupas foram vendidas, você terminou aqui, pelada, com os ratos e os catadores. Talvez bolinada por algum pervertido. 
Ela me olhou aterrorizada. A comunicação facial nunca falha.
– cruuuuué.
– eu sei, cruel, mas você não vai melhorar a dicção? Tem coisas que eu queria te perguntar.
Ela então começou a articular tudo que podia. Braços pra cima e pra baixo, perna no mesmo sentido. A boneca ainda estava se acostumando com as sensações e eu perdendo a paciência. Finalmente, parou e me olhou. Nunca vi manequim tão triste antes, eles estão sempre felizes e bem vestidos no shopping. Então, esta infeliz manequim, que nem chegou a ganhar um nome, se moveu o máximo que pôde pra acertar a minha boca, e de surpresa eu ganhei um beijo frio e infectuoso. Assim, ela voltou a ser uma humanóide sem vida.


E as interrogações das minhas perguntas, bem, eu ainda não tinha formulado pergunta alguma. É como quando você imagina seu encontro, no pós-vida, com Deus, Jesus ou S. Pedro (porque alguém tem que abrir a porta): alguma coisa deve ser perguntada, são tantas as questões, mas não se deve cair na mesmice do “qual é o sentido disso tudo?” (ora, porque bem aprendemos nos filmes e quadrinhos que eles sempre nos enrolam com esta). Então, chega a hora H e qual é a pergunta? Eu te pergunto. 
Acreditei, não acho razão para o qual, que poderia satisfazer a minha curiosidade natural com um objeto sem alma amaldiçoado (em outras palavras, um feitiço qualquer). Volto para casa agora, devo limpar a boca.